Eram tantas as que tinha o teu (sim, o teu) relatório circunstanciado da viagem. Entregaste-mo em mão no dia em que me foste visitar, acompanhada da tua fiel escudeira. Na sua maioria eram reportagens ambientais e perguntei-te pelas fotos. Mesmo pelas fotos. Não sei se posso dizer que me surpreendeste no meio da aventura. O facto é que captaste tudo de imediato. E tiveste comigo a serena e longa conversa que se palpitava. Elogiaste-me os cães e a forma como alegremente e carinhosamente obedeciam. Expliquei-te que estava satisfeito com as instalações no fim do caminho vicinal e entre muros. Satisfeito não é bem. Preferia uma casa do mesmo género mas sem aqueles afunilamentos nos acessos, do passa a chave para eu abrir a porta. Mostraste-me ainda uma foto de uma casa semelhante, onde se viam três mulheres jovens e de caras espantadas a olhar para o passarinho. Vestidas assim como a ilustrar várias épocas de trajes de cozinha. E perguntei-te quem era aquela torre. Disseste-me que era a filha do jardineiro, se a memória não me atraiçoa. E assim te foste, levando a escudeira pela mão. Voltei aos meus afazeres de conjuntura. Os quais eram... por MCV às 23:04 de 19 agosto 2006
No comboio passou-se qualquer coisa de grave. Mas não posso precisar o quê. Sei que me despedi dela e saltei, para evitar mais complicações. Ela insistiu em seguir-me.
Desde o tal almoço em que a nossa companheira mostrara um comportamento alterado que me perseguia o desejo de revê-la. A nossa visita às instalações fabris, na minha intenção de reconciliar a nossa comum amiga com o trabalho, tinha pelos vistos dado mais frutos do que era previsível. Encontrar a Direcção 0 não foi fácil. Mesmo seguindo os sinais. Na espécie de vestíbulo onde pontificava um segurança, o nome e o cargo não diziam a este coisa que fosse útil. No entanto, por trás dele, lá estava, em caracteres hospitalares, o rumo a seguir. Num golpe de génio, dirigi-me ao bar. Claro que ela estava lá. A nossa companheira não resistiu à nossa conversa. Chorava copiosamente e pronunciava palavras ininteligíveis. Ainda assim conseguimos a custo reintegrá-la. Entre a fotocopiadora e um PC. Embrenhou-se numa ávida leitura das especificações de um novo sistema e pareceu embalada, ainda que com pouco entusiasmo. Quanto a nós, era para Itália que íamos. E foi lá que fomos surpreendidos no comboio.
Mas não aprendemos a lição. Já na aerogare, prestes a fazer o check-in, apareceram os polícias à paisana. Não era a ela que queriam. Era a mim. E o caso não tinha a ver só com o meu aspecto levantino. A suspeita estava bem estribada - um dia inteirinho sem usar o cartão de débito ou o telefone móvel. Fora isso que conduzira à minha detenção. A minha argumentação foi parca. Não vi que houvesse qualquer utilidade em argumentar. Eles estavam convencidos de que todos os meus documentos eram falsos. Apenas pedi um representante da Embaixada de Portugal. Mais tarde, apareceu um indivíduo, pouco iluminado, a quem eu disse pouco. Apenas que os documentos eram legítimos e que ligasse a J. Ele haveria de dar solução ao caso. Para minha surpresa perguntou-me por que haveria J. de se interessar pelo caso. A minha resposta surpreendeu-o ainda mais do que ele a mim. E foi embora. Mais tarde, um outro indivíduo chega e pergunta-me: Você é que é do Monte do A.? Disse-lhe que não, mas que era da terra ao pé. A resposta dele foi esta: Pois, eu é que sou de lá, do Monte. É o dono? Pois. Não o conheço. O meu Pai é que conhecia o seu. Ah, e já agora digo-lhe que foi por sua causa que a joldra começou tão tarde na minha cortiça. Ele riu-se mas não deu por acabado o interrogatório, para meu espanto mais uma vez. As perguntas que se seguiram foram afinal sobre futebol. De algibeira, todas elas. Mas houve uma para a qual não tive resposta: Quem foram os jogadores que o Benfica aproveitou das camadas jovens, nos últimos anos?
Ela, que andara num torvelinho ao telefone a mover influências, chegou-se e sorriu: Já podemos ir? Já respondeste satisfatoriamente?
Nessa noite, no hotel, disse-lhe que apesar de tudo a atitude da polícia italiana tinha sido correcta, embora dura como lhes competia. Ela respondeu-me dizendo que já que não íamos usar os cartões no dia seguinte, ao menos que fízéssemos um telefonema. Nem que fosse para a polícia. Concordei.
*O extraordinário da coisa é que um tedesco nos imortalizou aqui na rede, jantando. Lado a lado e não frente a frente ou em diagonal. Como se isso interessasse a alguém mais. por MCV às 23:18 de 18 agosto 2006
A escada não tinha nada que saber. Era íngreme e estreita e a metade do lado da parede estava ocupada por uma espécie de trouxas de riscado que também poderiam ser squaws gordas à espera de vez. A metade onde antes se circulara estava agora cheia de vozes. Materialmente representadas por capas escaladas (na acepção da sardinha) de singles de vinil. A que me impediu o caminho falou-me com uma voz conhecida. Bem conhecida. No entanto, na altura não fui capaz de ligar o nome ao disco. Quando finalmente soube que era a voz da Bete, quis desculpar-me. Não encontrei nada melhor do que narrar o episódio da Cantina Velha. Quando o pessoal da minha terra tomou posse do bengaleiro... Mas a tua terra não é a nossa terra? Calei-me. por MCV às 22:46 de 17 agosto 2006
Ando a dar erros estúpidos. Hoje foi promórdios em vez de primórdios no post abaixo. Há dias foi outro do género. Agora mesmo, a escrever isto, assustei-me com as palavras que vi escritas. Estou mesmo a precisar de sombra e água fresca. por MCV às 03:14
E.N. 233, 2000
Uma foto dos primórdios deste blogue. por MCV às 22:10 de 16 agosto 2006
E vão três anos disto
À laia de curiosidade, também há três anos por Santa Maria o calor acalmou. por MCV às 04:15
Das divisões do Mundo (episódio n+1)
Sim, o Mundo também se divide entre os que conhecem, consideram a alínea e* e os que não.
__________________________________________________________ *a assim ordenada quinta alínea é a que diz: nenhuma das anteriores. por MCV às 18:52 de 15 agosto 2006
O quarto 327 (II)
Entusiasmado que estava em explicar estas e outras coisas aos circunstantes, nem dei pela aproximação dos meus inquilinos, cuja cara não conheço. Logo estes, ao encontrarem-me ali ao pé do prédio onde em outros tempos se podia desfrutar do cheiro da magnífica urina de gato, se prontificaram a enquadrar-me numa visita guiada às obras do prédio mais acima. O nosso, claro. Mas deixaram-me a meio da viagem. Mas o que conta é que quando cheguei à entrada do prédio fui surpreendido pelo aspecto esventrado da bateria de caixas de correio. Para conseguir abrir a minha caixa recuada, era preciso fazer rodar, sobre um eixo perpendicular ao seu eixo próprio, um comprido canhão. Depois, tendo acesso à sua extremidade, lá se introduzia uma gazua que actuava sobre o cardan na outra ponta. Lá dentro, os habituais envelopes grossos. De destinos longínquos. Mas aqui na entrada, houve outro pormenor que me interessou. A forma como o empreiteiro - duvidava que alguém tivesse feito um caderno de encargos - tinha solucionado a reparação dos falsos lambris de pedra. Vi que o enxerto estava ligeiramente desalinhado e tomei nota. Mas pareceu-me o trabalho razoavelmente bem feito, ainda que os inertes desta marmorite renovada fossem exageradamente grandes. E estivessem pintados, um a um, com predominância dos ocres e dos cinzentos.
O que parecia faltar era uma organização criteriosa do trabalho. Como se alguém tivesse pegado num grafo de obra, o tivesse abanado e as tarefas estivessem todas fora de ordem. Ali acabavam-se os revestimentos mas, logo à frente, faltava a escada. Como sempre. No piso de cima, ainda se faziam demolições e se assentava tijolo. No outro a seguir, havia um bar (sempre os bares) com uma tábua a fazer de balcão. E, na falta da parede de fundo, comunicava com o exterior, onde havia outro balcão de tábua, desta feita apoiado em bidons e, à direita, um grelhador de meio-bidom, é claro. Tudo isto no alto de uma colina de onde se via o mar. Era sempre a descer até lá. A moça mais requisitada era a mais gordinha e mais bruta. Era mesmo com ela que eu queria falar. E falei. O interesse dela no assunto fez piorar as coisas para o meu lado, uma vez que o resto do pessoal que atendia era pouco despachado. Os restantes clientes, que de facto não se viam, tornaram-se hostis e haviam de me acompanhar em parte da vistoria, dizendo disparates a meu respeito e da obra. Quando cheguei à minha porta, já vi acabadas as aduelas e o lindo enquadramento com conchinhas e motivos marinhos, tudo pintado a branco. O inquilino mostrou-me a ainda mais bela e inevitável lareira. E deu-me conta de todos os melhoramentos que introduzira. Já meio desesperado, bati em retirada. Ainda tive tempo para gabar a marmorite a um encarrregado e tropeçar nuns pintores que se entretinham a pintar de azul ultramarino uma ripas boleadas de um dos lados. Foi a eles que pedi três ripas para juntar à escova de aço e a uma brocha larga que já adquirira na descida e que trazia penduradas por baraços. Quando saí, estava no terreiro em frente a uma garagem de familiares. Cheio de riscos azuis na roupa. Já sem a brocha e a escova de aço que me haviam saltado dos braços onde as pendurara.
Um pouco mais atrás, estava um patamar em plano alto de onde assomava a mãe dos Valente. Foi ela mesma quem me disse que a mais pequenita, que andava ali na rua aos saltitos, não era filha dela como toda a gente pensava. Era neta. Filha da filha mais velha. Embarrigou, essa...
Deixei-a com os seus impropérios e voltei para o resguardo. Quando tinha já passado o último guarda-vento, a enfermeira-chefe interceptou-me. Era um mulherão. Não era bonita nem escultural. Mas era alta, forte e com formas bem definidas. Um mulherão. Perguntou-me se eu não sabia que o 327 tinha duas casas de banho, à falta de uma. Eu ri-me e respondi: Mas eu fui beber café! por MCV às 00:04
Ciclismo aos quadradinhos
A Volta a Portugal que aqui passa aos meus pés já faz uma semana, passou ontem por elas. Pelas mamas de gasolina de Foz Côa. Eu sei que passou. por MCV às 02:51 de 14 agosto 2006
Balzac e os vórtices de von Karman
A sensação foi mesmo a de que há mais de 60 anos, aquele rascunho dos vórtices de von Karman convivia com os receios dos nobres franceses da viragem do século. Agora vem o pior. Perceber a ideia do rascunho. Como se fosse minha. Talvez eu pudesse não ter herdado a caligrafia tão ao pormenor. por MCV às 22:55 de 13 agosto 2006