As senhoras estavam indignadas e desapontadas. Havia suspeitas de chapelada na mesa onde tinham estado. De nada se tinham apercebido mas eram implicitamente o objecto das críticas. Enquanto uma fila de golas altas, camisolas vermelhas, azuis bébé, barbas grisalhas e anoraques, em jornada de luta, mostrava a sua indignação pelo supostamente ocorrido, elas contavam-me o que não tinham visto. Ainda por cima aquela mesa era simbólica, diziam, funcionava no qualquer coisa das mulheres de um sindicato qualquer. Nessa altura, enquanto mirava a longa fila de manifestantes que pareciam ainda alinhados para votar e a porta da pastelaria dos bolos mais adiante (sim, há ali uma pastelaria que não é dos bolos, é só dos cafés, mesmo ao lado), resolvi-me a comentar que em matéria de chapeladas teríamos também que considerar o que passara há trinta anos, quando a gente que agora protestava punha e dispunha e fazia igual ou pior. Por qualquer milagre, as minhas palavras foram, embora aceites com indignação e protestos, decisivas. Em menos de um fósforo, desmobilizaram. Creio que no meio de alguma barafustação entre eles. Nessa altura, o rapaz recém-chegado ouviu ainda os restos da minha diatribe. As minhas tias e sogras pareciam consoladas com o desfecho. Uma das minhas primas não sabia da mãe. Talvez no clube, no teatro, naquela sala que fica na rua calcetada e imaginária, quase paralela à que sobe do largo da vila. N. estava na sala às escuras. Na segunda sala, a que tem ao palco ao fundo. Era a única pessoa em pé, com a saia e casaco brancos recortando-se contra o cenário cinzento. Encontrada a tia que faltava, bailava com N. quando ela me beijou. Retribuí, espantado. "Uma gaivota voava, voava..." - era isto que se ouvia nos altifalantes.
imagem composta a partir desta e desta por MCV às 09:24 de 12 março 2005
Too many Murphys
Ou talvez não. Não me parece que a frase do capitão Murphy, tão semelhante às que ouvimos diariamente nas mais diversas actividades, tenha, tivesse tido, a força suficiente para explicar o clima actual. Precisamos de facto de uma lei nova. De uma frase interrogativa sobre o que poderá correr bem. E alguma coisa correrá bem. Serei como muitos um pessimista reflexivo mas um optimista emocional. Quem carrega uma nuvem negra sobre a cabeça deve sofrer à farta com isso. Mas talvez nada possa fazer para o evitar. A questão é que, para onde quer que seja que nos voltemos, só ouvimos profetas da desgraça. Seja no ambiente, seja na paz, seja na segurança, seja na economia, as vozes só nos traçam cenários negros. Há muitos anos, a minha conversa era semelhante. Mas não fazia disso uma missão evangélica. Só quando me obrigavam a dar opinião, lá expunha o que pensava serem os anos que viriam. Devo dizer que acertei em muitas coisas. Não que disponha de excepcionais qualidades divinatórias. Limitei-me a observar os sinais. São os sinais que me interessam sempre. Interessa-me ouvir os outros mais para perceber os grandes números do que uma opinião em concreto. Talvez que a questão da nossa sociedade, da nossa civilização, seja ter atingido um patamar de conforto que não lhe abre grandes perspectivas de melhoria. O facto de não haver grandes desafios para completar pode conduzir a esta apatia insatisfeita e maldisposta. Precisávamos de qualquer coisa que nos levasse a agir com voluntarismo. Uma saga. Uma descoberta qualquer. O que se perfila, no entanto, é que seja mais uma vez uma grande desgraça a abrir as portas do empenhamento e a fazer-nos arregaçar as mangas, sem sorriso mas com vontade. por MCV às 14:08 de 11 março 2005
Um destes dias foi daqueles em que quase se tornou necessário utilizar as reservas monetárias. A ATM aqui ao pé de casa enviava os clientes para trás do sol-posto. Não sei se com propriedade, por haver qualquer tipo de restrição na zona, ou se por mero erro. Foi então que me veio à cabeça a questão das reservas. De todo o tipo de reservas. Há quem tenha a sua reserva de comida, de água, de gás, de pilhas, etc. E quem leve isso a sério. Há quem as tenha mas não leve a coisa a sério. Tem água já velha, comida em lata fora de prazo, pilhas sem carga, etc. E há quem nunca tenha pensado no assunto. Convivi em tempos com alguém que fazia anualmente a sua festa de substituição de reservas. Não era festejo que atraísse muita gente. Lá se consumiam os atuns enlatados das mais escassamente diversas formas. Se passava o dente pela sardinha em tomate, pelo feijão pré-cozinhado, pela panóplia de iguarias conservadas em lata. Mas o dinheirinho debaixo do colchão às vezes faz falta. Nesse dia quase fez. Um dia ainda contarei como achámos certa vez uma pipa de massa debaixo de um colchão. Num quarto de hotel. E o que fizemos com ela. por MCV às 04:47
Notícias limpas
A tentação de botar opinião sobre as coisas mais bizarras e desinteressantes instalou-se há muito entre os jornalistas. Mesmo que não seja uma opinião formal há-de ser um dichote a propósito. Ignoro se os despachos das agências já incluem alguns destes elementos e se são assim meramente reproduzidos. O que se percebe muitas vezes é que uma história bizarra é apenas uma história mal contada a que se juntaram os ingredientes para a tornar publicável. por MCV às 04:19 de 09 março 2005
As coisas que eu sei
Que todos nós sabemos, sem saber que sabemos. E que quando ficamos frente a frente com um écran de televisão onde passa um concurso de perguntas nos saltam de debaixo da língua. Não me detive nunca a ler o que foi já escrito sobre a atenção, a memória, a selecção dos dados na mente. Ninguém sabe ao certo como esta funciona. Dão-se palpites como em tudo na vida. Houve uma época da minha vida em que, surpreendentemente, tinha respostas para quase todas as inquietações de um companheiro de noitadas, fossem elas de trabalhos de grupo ou de mera diversão. Sabes como é que ficou o jogo do Barreirense? 77-87. Quando é que é o concerto dos Supertramp? Na semana que vem. A quantos segundos está o Markku Alen? 13. O pior é que eu tinha a perfeita noção de que, por um acaso qualquer, acabara de ouvir na rádio a informação solicitada. Com as horas de rádio que então ouvia era até provável que soubesse os resultados dos regionais de futebol. Às vezes sabia. Sabia mesmo os do hóquei em campo e como se tinha portado o Ramaldense nesse fim-de-semana. Havia também um que sabia quantos parafusos tinha a Torre Eiffel. Julgava que sabia. por MCV às 22:51 de 08 março 2005
Embirro com carneiradas, visitas guiadas, percursos pedestres. Dou-me, no entanto, conta de que se justificam algumas baias. Seria o bom e o bonito se se deixassem ao critério de cada um o que se pode e não pode pisar. Sabemos todos isso. Sabemos também que o problema não é um a pisar a relva. É a horda. Mas todos nós ansiamos por desfrutar certas paragens dispensando os outros. Se não somos todos, é uma boa parte. Reclamamos a torto e a direito contra as enchentes, as filas, as aglomerações. Há os que as evitam e os que nelas persistem, continuando a reclamar. É a vida! - como diria o outro. Sempre me fez confusão que as pessoas se dispusessem a enfrentar longas filas de trânsito para sul e para norte quando ali ao lado havia estradas desertas. Fazia-me confusão e dava graças por isso ao mesmo tempo. Há uns tempos que andava intrigado com uma coisa. Que tem a ver com baias ou com a ausência delas. Aqui perto de casa, num daqueles típicos arranjos feitos em planta e que ficam muito interessantes no papel, era necessário subir dois lances de escada e descer depois um certo declive para aceder de uma rua a outra. Pelo meio ficava um passagem muito viável sobre um canteiro. Claro que nasceu uma vereda. Há poucas semanas a vereda foi substituída por uma suave escadaria empedrada. Bom trabalho. Esta ideia de que os percursos devem ser deixados aos peões e mais tarde "oficializados" é interessante mas não é praticável em todos os casos. Nos tempos que correm, quando as veredas quase só existem nos tais percursos balizados, em que a quantidade de obstáculos urbanos é grande, é preciso ver em planta mais do que o papel permite. Não parece muito difícil prever os caminhos mais utilizados e a forma como devem ser implantados. Mas não é isso que acontece. Todos os dias somos confrontados com voltinhas do Marão para passar de A para B. Na leva anterior de melhoramentos que por aqui se fez, obrigaram-se as criaturas a descer e a subir umas escadas para transpôr um desnível de 1 metro. Também aí existia a vereda sobre o canteiro. Mas foi contemplada com um muro de Berlim. Coisas... por MCV às 04:06
7 de Março
A verdade é que não me esqueci. Não me esqueci da serra de Sintra, com e sem rali. De todos os troços cronometrados por onde andámos. Do cabo da Roca e dos ventos de finisterra.
Em termos náuticos tenho ouvido referências à boca do Tejo como compreendida entre o Cabo Raso e o Cabo Espichel. A nossa história, como sabes, é pouco diversa. Compreende-se entre o Cabo da Roca e o Espichel. Não foi trágica nem marítima, não me deixo levar pelas palavras.
Mas entre os cabos e os fins, juntou muitas areias de Portugal.
Terras de Espanha, também.
Não te digo mais nada, nunca adivinharás que estas linhas estão aqui.
Repara apenas que o Sahara estava deserto. Já nem existe.