Se há alturas particularmente férteis em disparates, imbecilidades. Estes últimos dias têm-no sido, sem que se possa dizer que é já uma antecipação daquilo a que alguns chamam silly season, dada a importância de alguns assuntos. Também nunca saberemos se os disparates que se ouvem reflectem ou não o pensamento dos que os proferem. Temo que sim. Analisando sempre e só os sintomas, a cada dia que passa se aviva a ideia de um suicidarismo. Longínquo, cavado, enraizado. Mas que dá à costa como as baleias, vez por outra, tornando-se visível. A cegueira que decorre da insídia, essa que nos tolda os sentidos. por MCV às 20:16 de 18 junho 2005
Quem disse que as regras de circulação em rotundas são fáceis de estabelecer? Ah, mas não era nada disto que eu ia dizer. Não. Não fui almoçar a Peniche, isso é um facto. Não fui à praia, disse para comigo que está muito vento. Resolvi ir ver o correio lá onde ele se amontoa. Perdão, o que se amontoa é o spam feito de árvores côrtas. Só de pensar em árvores côrtas, arrepia-se-me a espinha. Resolvi subir. Resgatar mais uma parte de mim. Vieram atrelados Vergílio Ferreira, Saint-Exupéry, Pearl S. Buck, C. Virgil Georghiu, António Damásio, Almeida Garrett, Lobo Antunes, João de Deus, entre outros. Tantos quantos a braçada amiga conseguiu envolver. Ah, e trouxe ainda mais um cinzeiro. Inútil objecto entre aquelas paredes. Foi assim com a pilha ao meu lado que cedi a passagem à camioneta das carnes. Quando vi o trânsito parado, fiz a habitual jigajoga por dentro. Passei pela ribeira e voltei a encontrar a camioneta das carnes. Bem feito. Quer isto dizer que, tendo permanecido atrás da dita camioneta ou não, aparentemente chegava à rotunda ao mesmo tempo. Sabe-se lá, no entanto, o que aconteceria. E foi, justamente quando me ria do imbecil que piscava para a esquerda, que a vi. Lá estava ela, em fato de faxina. Em mais de quinze anos, jamais a tinha visto à varanda. A primeira ideia foi parar lá debaixo e gritar arraial. Ocorreu-me que nem sempre a primeira pulsão é a mais certa. Embora o seja, na maior parte dos casos. Tive assim que vir aqui, à base de dados, recuperar um número começado por 2. Talvez não tivesse sido má ideia parar debaixo da varanda, vejo-o agora que já desliguei o telefone. Não, os livros do Orwell não sou eu que os tenho. O meu 1984 é de 1955. Quem não tem nada para fazer, faz merda. por MCV às 16:24 de 16 junho 2005
Era assim e não tá-í-ti ou tah-iti que ele dizia e suponho que ainda diz, o meu velho J. d'. Já compraste o Táiti duche? - era o sinal de que, em breve, muito em breve, rumaríamos a sul. Ele levaria, como sempre, os óculos de caminho e os óculos de povoação. E um salvo-conduto da namorada. Eu, o tal frasco. O meu irmão, não me lembro o quê. A minha última com eles já lá vão 19 anos. Talvez alguns leitores se recordem de nos ver. Eu era o que carregava todas as noites um tipo às cavalitas pelas escadas do então Splash. O J. d' era o que entrava todas as noites às cavalitas de uma cavalgadura no mesmo local. O meu irmão era o que carregava, no fim da noite, o bicho para cima. Os outros trinta eram os que se riam. Nessa última época, deu-se o caso de o moço se ter lesionado com gravidade aos 3 minutos de jogo, no primeiro jogo, no primeiro dia. Recusou-se a abandonar o torneio, embora nessa madrugada me tenha obrigado a levá-lo ao hospital de Faro, onde de resto permanecemos um dia inteirinho, de sol a sol. Depois foi invocando a sua incapacidade a desoras e a eito, até ao fim do mês. Havia sempre alguém que o carregava. Quanto ao Tahiti duche era uma espécie de poção mágica que, ao invés de força, proporcionava haréns, na teoria dele. E que, por uma ainda mais obscura razão mas que eu relaciono com o facto de andarmos a chouto, fora do alcance da tal polícia, a mesma que assinava os salvo-condutos, apenas era utilizada em férias. Faz sentido. Feitas as contas agora que a história assentou, e depois de mais de dez anos dos mais diversos odores tahitianos, pois corremos a gama toda, ele era capaz de ter alguma razão. Ainda não percebi é como é que o bicho, naquele último ano, sentado a noite toda, se safava. Verdade seja que nunca me dei ao trabalho de o observar. Só mesmo de o carregar para baixo. O.K. E nem todas as noites íamos ao Splash. Também gostávamos de inspeccionar as outras. por MCV às 12:26
Troço cronometrado
Ontem à tardinha, e por um remoto acaso, reuniram-se as condições. Quando dei por mim, desenhava curvas em ligeiro derrapanço no montado, alternando rapidamente esquerdas e direitas entre árvores de dupla escolha, aquelas que ficam no meio do caminho. Dei-me também conta de que, por um caso ou por outro, havia anos que não levantava assim o pó à estrada. Matei saudades. Apercebi-me de que andava a levar-me muito a sério. Nem uma única porrada com a parte de baixo do carro. Como não tive espectadores, tive que vir aqui gabar-me, é claro.
Acho que o post anterior teve a sua responsabilidade no sucedido. por MCV às 02:33
Sítios
Há sítios que ainda nos surpreendem. Depois do primeiro milhão de quilómetros estrada fora ainda é possível pousar em recantos inverosímeis. Sítios onde se supõe ninguém passa, ninguém vai. Dado o silêncio que tanto a noite como o dia comportam. Estradas de areia onde só os incautos ou os que não fizeram outra coisa durante anos metem não o jipe mas a carripana de todos os dias. O mar ali. Uma casa escondida num vale entre dunas. Um escasso pinheiro rente. Pouso fortuito de uma noite. Uma vaga ideia de sardinhas assadas e garrafas de tinto. Dormir como os justos. E nunca mais lá passar perto.
do projecto da ponte sobre a ribeira da Comenda, na E.N.10-4, MOP/JAE/DSP por MCV às 15:34 de 14 junho 2005
O mundo visto por elas
Ele: Vamos, independentemente do resto, mostrar que a > b. Ela: Mas c também é maior do que d. Ele: Isso agora é irrelevante. Concentremo-nos em mostrar que a > b. Adiante se verá o que se segue. Ela: Irrelevante? Por que é que dizes que é irrelevante?
Explicações adicionais já foram há muito dadas aqui. por MCV às 02:54
O kit macaense
Não tive então coragem de te oferecer o kit completo. Só o recebeste uns tempos após. Mas nesse dia de Santo António, enquanto escondia o meu carro - na época passava despercebido, hoje é quase uma relíquia - preparava-me já para te oferecer a pataca à mesa do café. A que era suposto ter jogado no casino improvisado, de uma só máquina, por detrás da simulada fachada de São Paulo. A que também dissimuladamente guardei no bolso, à revelia da minha companhia, que suspeitava já dos meus anseios. Outros, de nada suspeitaram. O tubarão confundira-se com as sardinhas, ninguém deu por ele. Provou-se que a pataca era mesmo da sorte. Não foi sequer preciso atravessar o Alentejo, de norte a sul, do Crato a Ourique, sob a brasa de Agosto, e até ao tal sítio, para o saber.
Ocorre-me muitas vezes nestas épocas de romaria nas estradas, a irónica figura do Matador, matando alguns dos seus passageiros, na sequência da testemunhada imperícia do seu condutor. Vi-o ao dito AMC, dobrado ao meio, depois de embater no velho 404 do meu tio. Apareceu-lhe o bólide, de atravessado como os comboios, à saída de uma curva, ia ele na sua habitual pachorrenta marcha. Tanto o meu tio como o seu fiel 404 ainda vieram a percorrer mais alguns milhares de quilómetros. O condutor do AMC, a ter sobrevivido, terá nesses outros quilómetros carregado outros fardos. Nunca terá percebido o que lhe aconteceu. É esse o drama das nossas estradas. por MCV às 01:32
Estas noites
Foram noites. Numa delas, troquei uma mulher e um manjerico por um cigarro. por MCV às 01:25