Nesse dia fui a dois casamentos ao mesmo tempo. Para um tinha convite. Era de um velho amigo. Decorria o copo d'água num daqueles restaurantes com vários salões quando, comigo, alguns resolveram penetrar no casamento do lado. A surpresa foi grande. O noivo era nosso conhecido. Frequentava o mesmo café que nós. E a parte feminina da festa era mais interessante. À algazarra inicial que promovemos, sucederam-se alguns brindes aos noivos e a uma quantas convidadas que entretanto se tinham aproximado. Quando a coisa acalmou, abandonei os companheiros. Sentei-me no muro deserto da varanda, de frente para o mar, que era Julho e fim de tarde. O gin tónico fazia-me companhia e ainda tinha os sapatos cheios de areia depois da nossa revista às tropas em parada, mais abaixo. Foi ao fim de um bocado que vi as soquetes. Balançando de um muro um pouco mais alto. Foi de relance. Mas não tardou que não me virasse. As pernas eram quase de menina, embora se notasse já o tornear das coxas que faz toda a diferença. Uns dezoito, dezanove anos. "Então hoje viemos de soquetes?" De réplica em réplica, já íamos na dança. "Não posso. Está lá dentro o meu namorado!" "Que a esta hora deve estar à sua procura. Ou intrigado por vê-la a três metros de umas costas de homem, olhando para o mar." "Acha que se percebe que estamos a falar?" "Não sei. Não há aqui mais ninguém. O muro é comprido e você sentou-se, ao fim e ao cabo, perto de mim." "Mas podem pensar que nos conhecemos." "Quem? O seu namorado?" "Sim. Ele não conhece a maior parte das pessoas. Eu sou prima da noiva, mas ele não conhece toda a família." "Ah, seremos até familiares. Primos que se não vêem há anos." "Isso." "E ele não teria já perguntado a alguém se me conhece? Ou às minhas costas?" "Não sei. Deixe lá."
Quanto o António me chamou para nos irmos embora, abri a porta do velho Ford Cortina e recostei-me na napa vermelha. Mas, de repente, saltei do carro e apressei-me a entrar nos salões, de novo. Vi-a ao longe, a dançar com um tipo. Não foi difícil colocar-lhe no bolso (sim, no bolso) do vestido branco um cartão de visita.
Uma semana depois, disseram-me que uma voz feminina tinha ligado, perguntando pelo meu nome completo. por MCV às 14:32 de 12 fevereiro 2005
Não sei o que lhes aconteceu. Nem à dona do quiosque que me tomou por um técnico da câmara, nem ao rapaz que me perguntou se as obras sempre iam ser feitas, tomando-me apenas por alguém que devia saber. Ela com toda a certeza temia perder o lugar perto do estádio, agora que o negócio prometia. Ele, sorrindo, apenas me disse que ia procurar outro local para dormir. Malditos papéis debaixo do braço, os que eu levava nesse dia. por MCV às 00:59
Há coincidências.
Ao escrever o post anterior, ocorreu-me uma constatação feita com o tempo. Que hoje, com a proliferação dos telefones móveis, com algum abandono da rede fixa, com a compartimentação das listas telefónicas se perdeu uma boa parte da probabilidade de encontrar alguém através delas.
Ora na caixa do correio lá estava a cartinha da PT sobre os dados pessoais e sua divulgação.
Não faço ideia se há muita gente a pedir o anonimato do seu telefone fixo. Alguns há. Sempre houve. Mas tenho a impressão de que pouca gente adere às listas de telefones móveis.
A net permite a quem a usa, e não são todos, encontrar alguém na lista.
Mas se as pessoas usam telemóvel e não o registam, é mais um contributo para este alheamento dos dias que correm.
De quantos amigos perdeu o contacto?
Os menos novos lembram-se desses tempos.
Quando os telefones se resumiam a um ou dois algarismos. Quando era preciso dar à manivela até que do outro lado atendia uma voz mais ou menos conhecida. Ligue-me a tal sitio, Dona Ermelinda, se faz favor.
Pois bem, não sou saudosista a esse ponto. Esta coisa dos telélés faz um jeitão. Mas sou daqueles egoístas, confesso. Ando com ele desligado no bolso. Para usar só em caso de necessidade.
Tempos houve em que assim não era. Em que também era incomodado e incomodava a toda a hora os que comigo trabalhavam ou com quem mantinha relações de trabalho. A chamada agitação do dia-a-dia. É preciso isto, venha cá ver o que se fez, pode encomendar mais material, o que é que aconteceu ao Zé? Era assim, do nascer ao pôr do sol. Sete dias por semana, às vezes.
Mas agora não.
Hoje, manhãzinha cedo, ouvi algo que não ouvia há muito. Algo que se vai perdendo na urbanidade dos telefonemas do carro para casa e de casa para o carro, de vizinha para vizinha, do café para o comboio.
Alguém chamava alguém. Ó Ritinha! Ó Ritinha! Tásmaovir? Ó Ritinha! Ó Ritinha! Tásmaovir? - exactamente neste ritmo, duas chamadas, uma interrogação, duas chamadas, uma interrogação. Consecutivamente.
Era, suponho, de janela a janela. Não confirmei. Limitei-me a absorver os sons. Que me transportaram para a época em que no bico do cêrro, sobranceiro à vila, escutava os sons de fim de tarde enquanto disparava a máquina fotográfica.
Galinhas, vacas, porcos, motorizadas, chocalhos e gritos. Ó Jaquiiiiiiiiiiiim - era a hora de ele voltar da taberna. Já lá vooooooooooooooooooooou - respondia o dito, lá do fundo.
Nunca pus os pés em cortejos carnavalescos.
O que não significa que não tenha uma certa curiosidade em apreciar de perto um, uma vez que calhe.
Há muitos anos, despontava o sol à saída da cave do Ti Guerreirinho, depois de uma daquelas açordas, deu-me para promover uma excursão de abalamos como estamos para o Carnaval de Sines.
Dividiram-se as hostes, contadas por vinte e tal. Vozes grossas pela ida, vozes finas pelo regresso imediato a casa.
Acho que fiz o caminho, embrutecido, talvez a cantar ô ô ô ô, Aurora. Era de facto o nascer do sol.
"Resta assim ao Homem completar-se na ilusão do excessivo alimento que o precavenha de escassezes futuras, no excesso de distracção da mente que impeça a tentação paradoxal de se entender a si próprio."*
Eu não sei ao certo o que isto quer dizer mas suponho que é o tradicional comam e bebam e deixem-se de filosofias.
Deixa-me no entanto uma interrogação. A ser verdade o aforismo segundo o qual as "filosofias são para quem tem a barriga cheia", há o risco de a quase circunferência se fechar ou não?
Laurindinha, do magnífico Abrigo de Pastora, que acertou à primeira.
E aqui está a prova fotográfica. O antigo couto mineiro de Jales e os seus arredores valem a visita. Para quem gosta de ver os chamados restos arqueológicos da era industrial.
Pistas adicionais:
São duas (que eu saiba) as localidades cuja designação inclui esta palavra ou é esta palavra.
Ambas são sedes de freguesia do mesmo concelho.
O nome da sede do concelho começa pela mesma misteriosa letra.
Esta é uma palavra portuguesa, cuja primeira letra é uma consoante e todas as restantes por preencher são vogais.
A primeira letra não é nenhuma das seguintes:
B
C
D
F
G
P
S
T
nem sequer K ou W.
Algures nas memórias deste blogue está uma foto em que ela aparece. por MCV às 02:22
Dificuldade
Tenho estado a magicar numa série de argumentos que levem as pessoas a votar em mim.
Não consegui alinhar nenhum.
Têm ouvido como eu os tempos de antena na rádio?
Não? Não sabem o que estão a perder.
Em homenagem à chuva que cai há uns dias lá para as minhas bandas, prepara-se por aqui um post monográfico. Sobre a água macia e sobre as cargas d'água. Sobre os pontapés que se davam nos torrões à entrada do verão e veja lá isto, só pó, só pó, nem uma humidadezinha.
Sobre os atasqueiros de invernos caprichosos. Sobre os barrancos passados a vau e sobre as carradas de pó dos verões mais malinos. Sobre os dias em que o alcatrão derretia mas em que, à noite, a samarra sabia bem. Sobre tudo isso, porque a memória destas coisas é importante.
Porque de facto o verão de 2001 foi, na altura, o mais seco do século. E do milénio, até.