Pois não sei. Não sei que diga...
Eu cá digo e torno a dizer que ele não conhecia a roda.
A roda... A roda, talvez não. Mas coisas parecidas conhecia com certeza. Então a Terra não é uma bola?
É. Mas não é uma roda.
Mas roda. Vai rodando. É ver o sol nascendo e pondo-se.
Pois. Mas não é bem roda. Roda de andar. Uma bola sempre rebola.
Andamos de reboleta então...
A terra não é uma roda.
Não é, mas parece-se.
Mas se ele conhecesse a roda, havia de haver animais com rodas.
Mas andam na mesma, ou não?
Andam. Mas se tivessem rodas, andavam mais depressa.
Será que sim? E seria preciso isso para quê? Não dava jeito para subir escadas...
Não sei, mas olha lá... Há animais com asas, não há? Só depois é que se inventaram as asas dos aviões. Há animais com barbatanas que nadam e flutuam, não há? Só depois é que se inventaram os barcos e as barbatanas para os homens. Então porque é que ele deixou inventar a roda primeiro e não fez logo animais com rodas?
Ah, pois isso não sei.
Mas sei eu. É porque não conhecia a roda.
Acho que se aplica isto a todos.
Quando se trata de determinar o que é e o que não é um objecto pessoal, só pairam dúvidas.
Não falo do isqueiro, do relógio, da caneta. Mesmo esses, quando descartáveis, têm estatuto temporário.
Nem sequer da tralha que se mete num saco ou numa mala para passar um fim-de-semana.
Falo de todos os outros que, tendo ou não ocupado lugar num bolso, numa mala ou num saco, não são dispensáveis mas não estão sempre à mão.
Nessa classe, tenho muitos. Espalhados por gavetas, dentro de baús, na mala do carro, em cima de uma estante, guardados em caixas, eu sei lá.
De vez em quando, avisto-os. E é uma festa.
A alguns outros, já perdi o rasto.
Mas quando se recupera algo que julgávamos perdido ou até, o que poderá parecer mais estranho, que pensávamos nunca ter possuído, soltam-se uns demónios.
Catadupas de memórias irrompem dos cantos, soam nos ares, deixam-se tocar na fragilidade do reencontro.
Os que são meus e os que estão meus.
Os que são meus provavelmente até chegarem às minhas mãos foram produtos quaisquer, iguais a outros tantos, saídos de fábricas ou das mãos de um artesão. Nada de memórias por onde andaram.
Já os outros, os outros, que memórias de antepassados se terão extinguido e onde e como?
Aquela cigarreira, por exemplo, que não terá sido verdadeiramente de ninguém? Um objecto que se demorou em gavetas por anos sucessivos e nunca teve dono, ninguém que a colocasse no bolso ou mandasse gravar as iniciais no espaço reservado. A espaços esteve minha e minha nunca o foi. À gaveta voltava. Sempre de alguém que não fumava.
Se morrer de botas calçadas, quais deles morrerão comigo?
Há quem o diga descendente de Spencers e de Le Coqs.
O mesmo é dizer que representa os nossos piores complexos de inferioridade face a francos e a saxões.
Mas ele lá vai, sempre comparado com tudo e com todos, uma vezes para menos outras para mais.
E não liga a essas coisas.
A minha geração é marcada pela particularidade de ser a última a ter as próprias memórias ainda a preto e branco.
Recordo-me da minha infantil pergunta, marcada por um algum cepticismo ignorante, ao ver uma das minhas primas a preparar-se para inserir um rolo colorido numa máquina fotográfica:
"Atã essa taméim dá pa tirar fotografias a cores?"
Dos antepassados que não cheguei a conhecer, as fotos a preto e branco ou a sépia.
Da juventude de pais, avós e tios, a mesma coisa.
Dos meus primeiros olhares para a câmara, o Ilford Pan.
Até grande parte das minhas primeiras tentativas, já com a velha Agfa que afastava de mim a tentação de manusear a Zeiss Ikon paterna, se fizeram a PB.
É pois dessas circunstâncias, da vulgarização que entretanto a película colorida conheceu, que nasce essa marca de separação entre as memórias mais longínquas retratadas em tons cinza e as mais recentes dotadas das cores do mundo. Mesmo que estas outras já tenham em alguns casos passado a jogos de azuis ou de vermelhos.
É quase um mimetismo da memória humana, tão propensa a perder a cor.
Nunca fui grande artista do retrato. Tanto não, que mesmo à força de muitos anos de registos, não me comovo (nem aos outros) com a minha obra.
É certo que entre a Agfa, a Zeiss Ikon depois herdada (e de longe a melhor de todas), a Praktica que mais tarde comprei na expectativa de baixar os custos e a mais recente, abusiva e fraternalmente sonegada Sony de lentes Zeiss, há muita coisa em arquivo.
Mais pelo interesse de trinta e tal anos de recolha, em que as fotos de família nunca tiveram qualquer importância, antes dando lugar a muita estrada como já aqui referi.
E há de tudo, cor, preto e branco sempre mais a gosto e a actual possibilidade digital de fazer umas flores.
Ah, e pelo meio, outra sonegação fraterna, a maquineta de cassettes de 8 mm que o homem parece já ter esquecido e das quais cassettes saiu grande parte das imagens que por aqui aparecem.
Algures, ao longo deste percurso, fizeram de mim fiel depositário de espólios familiares.
Com tanta coisa em carteira, algum dia haverá de sair qualquer coisa do mato.
A ver vamos o quê.
Ah, e sim, muito negativo estraguei eu ao meu pai. Eram fotografias falsas, já se sabe.
Às vezes, penso que este blogue é mais velho do que é.
Ainda falta quase um mês para o aniversário. Dir-se-ia que partiu das boxes enquanto uma onda generalizada tinha partido da grelha do outro lado dos rails.
Por pensar que é mais antigo, enredado num qualquer referencial de inércia que transforma segundos em séculos para o observador exterior (será ele exterior?), por pensar que é mais antigo, dizia, julgo muitas vezes já ter aqui dado conta de algumas reflexões mais pessoais. Pessoais mas suficientemente partilhadas, creio-o, para que outros com elas se possam identificar.
Indo à raiz, ao H Gasolim de há onze meses, fruto de um verão de sequeiro, em que o H era de Hélder, em homenagem ao camionista desconhecido como o soldado, e Gasolim vinha pelo contrário de um radical mais do que conhecido, indo aí, lembro-me de vaticinar para estas páginas uma vocação igual à do seu autor, a demanda de caminhos, o contacto com lugares nunca vistos.
E a coisa borregou visivelmente nesse campo. Como muitas conversas sem norte, derivou para sabe-se lá onde.
A verdade é que não houve aqui grandes referências à estrada, às suas atracções e aos seus perigos.
Dos perigos, é certo, quase nunca me apeteceu falar. Outros se ocupam disso com mais ou menos sucesso.
A atracção da estrada, no entanto, creio que se ressente desse avultar dos receios. Não que hoje haja mais razão para recear. Pelos vistos não há. Já passámos por anos em que com menos tráfego morriam 2500 pessoas no asfalto.
Mas o ritmo a que se vive não ajuda nada ao desfrute das viagens.
Creio que por aqui, pelo nosso país, pouca gente já experimenta o prazer de ir de A a B só por ir. Mais pelo trajecto do que pelo destino. Pela amostra que conheço, acho que há poucos.
No entanto, as viagens de carro sempre foram para mim motivo de interesse. Mesmo que o destino não fosse grandioso.
Talvez por isso tenha um mapa mental das nossas estradas que se bate com o dos camionistas. Um pouco por todo o lado já deixei pneu. E tenho as minhas preferências. Um dia também falarei disso.
Há anos, ocorreu-me fazer um livro de fotos, estrada a estrada. Já depois disso alguém lançou um sobre uma estrada em particular. Outros haverá que eu não conheça. Para além das publicações que o antigo M.O.P. dedicava às novas construções e melhoramentos.
A primeira foto desta saga tem cerca de 32 anos. É a minha primeira experiência fotográfica e retrata um posto de combustível de que muitos poucos se recordarão. Ficava mais ou menos onde hoje está o muro de suporte do parque de estacionamento do Continente da Amadora, ali onde se cruzavam então a E.N. 117 e a E.N. 249-1 e era da Shell.
A última é a do post anterior. Na área de serviço de Aljustrel. 32 anos depois, no começo e no final de duas viagens para sul.
Em quase nada coincidiram os dois trajectos. É dessa memória das estradas de então que conto falar um destes dias.
Até a minha estrada das oliveiras em que descia para a horta já não existe. Mas o rasto das rodas de há 32 anos ainda permite a passagem. Por quanto tempo mais?