Tomemos como exemplo o terramoto de 1755. Ainda hoje se tentam reconstituir as isossistas desse dia. Quantos abalos houve? Centrados onde?
As fontes são inúmeras, toda a gente o sabe. Um fenómeno natural que para a época quase anunciava o fim de l'Ancien Régime.
Mas são pouco esclarecedoras. Não fosse a colecção de registos do Inquérito às Paróquias e outros documentos de acervos locais, o quadro da desgraça não seria tão conhecido.
Suponhamos agora que a comoção é uma grandeza escalar. Sem grande rigor, uma Mercali das sensações.
Suponhamos também que a importância de um acontecimento mortífero é uma grandeza escalar, directamente proporcional ao número de mortes.
Sabendo que um acontecimento deste tipo pode consensualmente ocorrer num intervalo de tempo mais ou menos extenso, quer de trate duma guerra, duma peste, dum furacão, dum terramoto, de um acidente causado pelo homem, suponhamos que é possível relacionar directamente um certo número de mortes com o sucedido.
Atrevamo-nos a dizer que existe uma relação linear ou não, entre a importância de um acontecimento deste tipo e a comoção por ele provocada em grupos humanos.
Se existe essa relação e se tanto a importância do acontecimento como a comoção geradas podem ser medidas, por serem grandezas escalares, poder-se-á decerto mapeá-las.
A um acontecimento produzido no local L, de importância I, corresponderá, em certo instante pertencente ou não ao intervalo da sua duração, um conjunto de isossistas (chamemos-lhe assim) passando por grupos humanos sujeitos a uma comoção de igual grandeza.
Suponhamos que tudo isto é possível.
Que surpresas nos guardariam os mapas de alguns dos acontecimentos recentes?
Que factores se teriam de levar em conta para explicar o desenho das curvas?
Eu sempre tive a impressão que batatas com bacalhau não era a mesma coisa que bacalhau com batatas.
Acho que não foi na escola, não foi em casa. Foi algures no mundo que aprendi ou que ganhei essa impressão.
Mas vejo essa diferença ser hoje ignorada. Da mesma forma que não há mestres de cantaria, entalhadores artistas e outros profissionais do milímetro, as subtis diferenças também se foram.
Nem em tudo, é claro.
Mas dir-se-ia que no geral, para quem é, bacalhau basta! Ou serão só as batatas?
Aquele era o sítio.
Pequeno por dentro, grande por fora.
Música que se amaciava dos decibéis a mais, à medida que caminhava na direcção da praia.
Escadarias, pequenos recantos, a lua por acaso cheia.
Olhava o rosto dela a essa luz.
Não sabia muito bem que rótulo lhe apor. Segunda escolha?
Segunda escolha decerto não naquele dia. Naquele dia não. Olhara para ela com outros olhos.
Um rosto que ele supunha não voltar a ver. Ofuscado que estivera sempre pelo sorriso de uma estranha presença.
Não. Segunda escolha não. O que seria feito da pequena princesa atormentada que surgia sempre do nada?
Essa sim, essa não apareceria mais.
Não ofuscaria o brilho ligeiramante estrábico daqueles olhos. Não. Não viria.
De repente, o remorso. Porquê? Por que carga d'água nunca reparara a sério naquela face?
A música apenas se misturava com o som do mar. Com as palavras pouco mais do que ciciadas que ela pronunciava.
Teria reparado outrora? Seria por isso que a sentara no banco das suplentes?
Não. Agora, o banco era de tijolo, muro acabado a tartaruga. Tudo branco. Branco brilhante nos contornos da íris castanha. Pequena divergência.
Suave a pele, tão suave. Morena. E serenas as palavras, sempre serenas.
Não mais procurou fosse quem fosse. Apenas um ou dois copos apanhados no bar, à revelia da comitiva. Aquele rosto não fazia parte do catálogo que os outros lhe atribuíam.
E ninguém mais se acercou da pequena plataforma sobre a praia.
Caminhou lado a lado com a inevitável companhia mais uma vez.
No terraço, seguiu o mesmo caminho.
Quando reparou que ela se encostava ao mesmo muro, da mesma forma, voltou a lembrar-se da segunda escolha.
Depois, ela tocou em qualquer coisa que estava no chão.
"Olha lá, onde é que te meteste ontem à noite?"
Dançaram como sempre. As mesmas músicas.
Ao fim da noite, discretamente, voltou ao recanto e roubou do chão o copo da véspera.
Vento do deserto
E mar suado.
Na costa dos Esqueletos
Aportei.
St. Exupéri caiu mais a norte,
Mas não tenho bússola
Que me desdiga.
Há um rosto na praia
Entre barcos em ruínas.
No olhar, pistas, rumos,
Travessias.
Farol falso de contrabandistas
E piratas.
Travessias dos desertos
Ou morrer na praia
Sob estes olhos?
Estatísticas, registos, anotações.
Eu sempre fui mais pelos sítios onde ousava abandonar o estado de vigília. Uma espécie de mapa dos locais seguros para baixar a guarda.
R.C. ao contrário, anotava as bacias hidrográficas onde vertia águas. Tinha o objectivo último de ser pantalássico. Contribuir para a massa de todos os oceanos, sendo que todos são um.
Soube disto num cais qualquer do Sena.
Faltou então o terceiro português para completar o provérbio.
Nada disto é, mais uma vez, novo.
Gosto pouco de falar de actualidades, mas há algo recorrente nestas coisas que, aparentemente, não é visto, não é assinalado.
Falo do colapso da estrutura de betão do aeroporto de Roissy.
Há qualquer fenómeno na nossa sociedade, decerto já estudado por alguns, que parece dividir os cidadãos entre os filhos da filosofia grega e os repetidores de argumentos sem sentido.
Uns dirão que é a massificação da comunicação, outros que sempre assim foi e que o que essa massificação faz é não difundir o erro mas ampliá-lo. Sendo coisas diferentes.
Dou de barato que o racionalismo não é tudo na vida. Já aqui o disse por mais de uma vez. Mas continuo convencido de que, tenha ele as bases onde as tiver, falte-lhe a consistência e os dados que lhe faltarem, nos trouxe até ao patamar em que estamos.
E que é difícil (só difícil?) discutir seja o que fôr sem usar lógica. Depois, até podemos discutir (?) a discussão em si, a sua validade, por aí fora...
Retomando.
Independentemente da minha falta de informação, pois apenas disponho dos dados que obtive nas televisões e nos jornais, parto do seguinte conjunto de informações:
Existia uma estrutura em betão do tipo túnel com janelas, em que assentava uma outra estrutura metálica de suporte a vidraças.
Essa estrutura colapsou depois de fissurar.
Suponho (com algumas dúvidas) que o troço que colapsou era idêntico aos adjacentes.
A estrutura estava ao serviço há cerca de um ano.
Ouço depois as habituais lengalengas:
Que a estrutura foi feita à pressa.
Que a data da inauguração prevista foi postergada por mor da falta de condutas secas (?) para os bombeiros, de sinalização e ainda por ter caído um candeeiro.
E que durante a obra, as falhas de segurança do estaleiro eram evidentes.
Isso foi o que ouvi e que li.
Ora isto leva-nos onde?
Leva-nos a um primeiro ponto que é recorrente e esclarecedor: quando acontecem coisas destas, há sempre um sem número de factores irrelevantes mas supostamente negativos que nos é apresentado como decisivo - a falta de sinais, a falta de condutas, o candeeiro caído e a insegurança do estaleiro. Faltou dizer que o engenheiro chefe usava sempre uma camisa negra e que as garrafas de água bebidas pelos operários eram de duvidosa proveniência.
É com esta espécie de argumentação que se pretende explicar o sucedido.
E leva-nos mais longe, leva-nos a ignorar que quando colapsa uma estrutura destas, uma de três coisas deve ter acontecido: ou foi mal calculada, ou foi mal executada ou foi sujeita a esforços para os quais não estava dimensionada.
Dando de barato que não houve um sismo de grande magnitude em Roissy ontem de manhã, que nenhuma aeronave colidiu com o terminal e que não se procedeu a uma demolição propositada da estrutura, podemos eliminar a terceira hipótese.
Ficamos com o erro de projecto ou com má execução.
Aqui faz algum sentido apanhar o sentido das frases soltas que se ouviram - foi tudo feito à pressa!
Ah, pois foi! E não é isso o que sucede hoje em dia em todo e qualquer lado? Que obra pública ou privada se faz hoje sem que haja uma correria desenfreada contra o tempo?
A frase ridícula de alguém que dizia que agora pensava duas vezes antes de entrar num aeroporto poderá ter sido dita por quem reside num edifício construído à pressa, por quem transita por vias feitas à pressa, por quem assiste a jogos de futebol em estádios feitos à pressa...
Tudo se faz a correr. É o sinal dos tempos. Não adianta berrar a torto e a direito, porque quem decidiu isso fomos todos nós. Todos queremos mais produtividade, mais riqueza criada pelas nossas mãos, mais dinheiro ao fim do mês.
Às vezes pagamos caro por isso.
Ainda se há-de descobrir o que aconteceu. Mas de certeza que não foi por não haver sinalização, condutas ou pela cor da camisa do engenheiro responsável que a coisa se deu.
Podem, sim. A gente tem pressa no trabalho feito.
E depois, como é que fazemos? Para fechar as portas, essas coisas...
Ah, não se preocupem, o guarda há-de vir aqui. Depois, avisam-no quando saírem...
E assim foi, a tarde caiu. A noite fechou-se, os holofotes lá apontavam para as reparações que iam sendo feitas.
O cansaço acumulava-se, até porque a semana já tinha incorporado outras noitadas.
Ô. Ô. Ô. - era assim a modos que um grito. Uma vaia sem vocativo.
A parte da nave industrial que os holofotes não cobriam apenas tinha aqui e ali um ténue brilho de reflexão. Parda.
Do meio disso, surgiu a figura. Baixa, com uns óculos de massa e um boné de orelhas, que o frio apertava. Não para eles que trabalhavam para aquecer. Um cão pouco mais que minúsculo, acompanhava as botas que podiam ser de elástico. E levantava, orgulhoso ou requerente, o focinho.
Não esperavam já guarda nenhum. Eram quase três da manhã e ainda havia muito para fazer.
A figura surpreendeu-os, de facto.
Então, aqui andam, a trabalhar...
É verdade.
Não me disseram nada.
Não?
Não. Ninguém me disse que vocês aqui estavam. Até podia ter trazido o cão. Ou a arma. Mas nunca solto aquela fera. E não gosto de apontar uma arma a um homem, atão e agora?
Quer dizer que estávamos sujeitos a ataque?
Ladrões... ladrões... atão veja lá. Ninguém me disse nada. Eu é que não quis trazer a arma. Nem o cão.
Pois é, a gente disse ao seu patrão que ia ficar. Ele disse que o avisava.
Mas estão a trabalhar... Se vocês soubessem como os outros aqui penaram... à falta de material. Eles bem queriam trabalhar, ficavam aqui também à noite, mas... à falta de material, o que eles aqui penaram... Vocês têm tudo o que precisam? Não lhes vai acontecer como aos outros, à falta de material...?
Não. Esteja descansado. Não será à falta de material...
Mas está frio! Não têm frio?
Frio? Há lá frio que entre com a gente, homem! Estamos a trabalhar.
Pois eu tenho. Tenho que andar de um lado para o outro. Mas não trouxe o cão. Vocês sabem lá do que aquilo é capaz. Este não. Este coitado. Agora a fera... nem lhe abro a porta do canil. É perigoso. E também não sou homem para apontar uma arma a outro homem, atão e agora?... Mas não me disseram nada...
Pois é, esqueceram-se.
Não lhes disseram para irem ter comigo? É que eu nunca aponto uma arma a outro homem, atão e agora... Também nunca quis conhecer outro homem, atão e agora? Mulheres? Mulheres, já conheci muitas. Agora outro homem, nunca quis conhecer nenhum... atão e agora?
Pois é, faz bem.
Amigo, vamos embora.
Tá tudo pronto?
Tá. Se a coisa correr bem, só voltamos para a semana.
Ah sim? Atão e o que é que pode correr mal?
Pode acontecer que ainda haja chochos para preencher. Só depois do material secar, é que se vê.
Ah sim?
É. Por agora, parece bom. Mas daqui a umas horas, pode ser que apareçam pequenos orifícios, coisa pouca.
Atão e eu não posso ver isso?
Pode. Você é capaz de dar uma vista de olhos e ver se está tudo na mesma? Venha cá que eu explico-lhe o que é que pode acontecer...
Teja descansado. Daqui a umas duas horas, ligue-me.
Tá certo.
Sabe o número?
Então não é o número aqui da fábrica?
É. Mas você faz o seguinte: Dá-me uma letra. Por exemplo Z. Liga e diz Z. Não diz mais nada. Assim eu já sei que é você e digo logo: Sem novidade!