Gastos os pneus
Do carro cinzento
Na velha garagem
De porta de chapa esburacada.
Pelos buracos
A luz de cães errantes
Sobre a calçada.
Já mal se distinguem
Os sons do carro de parelha
Com chapa de Ourique.
Apenas o cacarejar de uma galinha choca
Se confronta com o zumbido eléctrico
Da bomba de água.
Cheira a lenha e a sul.
A cal caída sobre as ervas
E a fruta amadurecendo
Ao sol.
SG, inéditos, 2001 por MCV às 13:28 de 23 abril 2004
Quando ouço falar em previsões quase sempre me arrepio.
O mais estranho é que são os que mais gozam com as cartomantes e quiromantes de bilhetinho na caixa do correio, que produzem as maiores calinadas em papel milimétrico (isto do papel milimétrico é saudosismo...)
Mas se um dia se fizer uma verdadeira antologia das previsões, verificar-se-á por certo que a qualidade dos conteúdos não andará muito longe da das colectâneas de erros escolares.
Não desdenho de quem diz que a verificar-se em dado intervalo a constância das condições evolutivas actuais ou ponderadas, teremos em tal ano este valor.
Mas isso também faz a senhora dos créditos do anúncio de televisão. Diz logo ao povo quanto é que vai pagar daqui a 23 anos, se as taxas se mantiverem inalteradas.
Qualquer computador bem alimentado de dados e bem ensinado, dá respostas rápidas.
Porque será que insistimos tanto na miopia?
O pacato fim de tarde pascal no café central da vila alentejana não foi interrompido pela catadupa de notícias que o telejornal debitava por cima das cabeças indiferentes dos circunstantes.
Apenas um julgou ouvir um relato que começara assim: “Uma mulher de 29 anos...”
Conheceu Luísa no dia em que se apresentou ao serviço.
Pelas referências que se abstiveram de fazer, percebeu metade da história.
A outra metade quando encontrou Luísa.
Ela mostrou-lhe os dossiers, os apontamentos, falou dos casos complicados, entregou-lhe tudo. Despediram-se.
Dias depois, viu-a entrar na sala de aulas, cumprimentou-a de longe, viu-a falar com alguém, sair, voltar a entrar, sair outra vez.
Encontrou-a à porta da sala, no fim das aulas. Falaram um pouco, Luísa perguntou se ele ia para casa.
Aproveitaram-se a boleia no comboio nocturno.
À medida que ouvia Luísa falar, tinha a consciência de que o ténue fio se ia desfibrando, desfibrando...
Quando se despediram, marcaram um café para depois da Páscoa.
Falava de alto sobre a segunda guerra, os mapas de desembarque, Anzio, Dunquerque, depois de Tobruk, de Varsóvia, de outros lugares incidentais.
Segurança nos pormenores, um detalhe aqui, outro acolá.
O parceiro fez-se entendido. Aquiesceu e adiantou mais nomes, mais locais, mais incidentes.
A tudo dizia que sim.
A um surdo pode dizer-se um palavrão no meio, que ele não nota.
A um entendido, meia-dúzia de locais inexistentes e personagens de almanaque soam como heróis em batalhas longínquas.
Hoje copiei de outro blogue.
Confesso-o.
Não copiei tudo, copiei só uma ou outra frases. Mas a ideia está lá.
Não vou dizer de onde, nem vou atribuir os créditos (como se diz agora) ao autor.
Já conferenciei com ele e negociámos a coisa, ele deixa-me dormir e eu fumo menos. No meio disto, perdoa-me o plágio.
Às vezes, sofremos disto. Do dois em um. Ou do um em dois. Ele e eu. Segreda-me coisas quando estou quase a dormir mas não as assume, passa-me a bola.
Eu retribuo-lhe ao volante, enquanto ele acelera ou reduz. Talvez seja perigoso, um com os pedais, outro com a manobra. Mas a Brigada de Trânsito ainda não deu por nada.
Mas é assim. Algures, o homem escreveu:
"Porque não existe essa coisa de mudar o rumo, voltar atrás... As pessoas é que traçam rotas imaginárias, umas mais rectilíneas, outras loxodrómicas e pensam que o seu destino é esse.
Mas esquecem-se das tempestades, das correntes, dos leixões, que as mandam ao fundo ou para outras paragens. E esquecem-se sobretudo do mecanismo interno, que a sua vontade não é reduzível a um traço num mapa. E que talvez essa vontade nem sequer exista. Dizendo de outra forma, não se foge nem se altera o destino. Ele é o que tem que ser." Ora eu subscrevo e digo mesmo mais:
Onde raio é que fomos buscar a ideia de que somos um produto acabado?
Onde raio é que fomos buscar a ideia de que somos diversos de átomos, moléculas, células reagindo a outros átomos, moléculas e células, campos eléctricos, magnéticos, gravíticos?
Onde raio é que fomos buscar a ideia de que, seja o tempo lá o que fôr, não é o tempo, seja com a concordância de algo que desconhecemos ou não, que operando sobre as condições iniciais, se é que existiram, que nos coloca aqui, frente a um teclado e a um écran?
Onde e quando é que nos convencemos de que somos deuses?
Por duas razões essenciais, uma das mais procuradas imagens deste blogue é esta:
Por um lado, chegam aqui procurando referências ao livro de Paco Roca, uma banda desenhada inspirada em Dali e no quadro Jogo Lúgubre.
Por outro, procuram a carta Alberto Lúgubre de um desses baralhos fantásticos agora em voga.
O certo é que a imagem aparece em segundo lugar nos resultados do Google há bastante tempo.
Trata-se apenas do portal do cemitério de Montalegre, filmado num dia de outono. Nada mais do que isso. Uma imagem retirada do super 8 que, pelos vistos, corre mundo. Bizarrias.
O que é justo e o que o não é, é daquelas coisas em se vira o mundo ao contrário, volta-se a pô-lo na mesma posição e não se chega a conclusão nenhuma.
Até na velha e simples regra do Um parte, o outro escolhe, quando de dois se trata, há ou pode haver uma injustiça latente...
Mesmo que não se trate da criança que Salomão terá poupado.