Já aqui falei sobre o conceito de acidente.
E de como se pode estabelecer uma relação entre o grau de conhecimento das condições envolventes e a ocorrência de acidentes.
Grosso modo, a queda de um raio sobre uma pessoa é um acidente. Mas se essa pessoa dispuser do conhecimento que lhe permita fabricar um pára-raios e não o tiver feito, pode dizer-se que concorreu para o desfecho.
No limite, se se domina completamente um sistema e se alguma coisa falha, alguém terá falhado em algum lugar. É a velha máxima de que o material tem sempre razão.
Não se trata assim de acidente, trata-se de uma falha.
O problema aqui é que normalmente todos nos esquecemos de que somos humanos. Os outros tanto quanto nós.
Vários factores concorrem hoje para a paranóia securitária em torno de tudo e mais alguma coisa.
O primeiro, que é aparente e sendo aparente não deixa de ter reflexos reais, é essa espécie de ingenuidade que transparece das vozes que se espantam com a morte.
Porque é que eu digo que é aparente? Porque sabendo todos nós que a morte nos ronda do primeiro instante ao penúltimo, já que no último ataca finalmente, continuamos ingenuamente a julgar que assim não é. É o que vemos diariamente nas televisões, é o que lemos nos jornais, é o que ouvimos na rua - Não devia ter acontecido.
Dir-se-á que essa ilusão é fundamental à sobrevivência. Assim o julgo também.
O segundo, é essa espécie de superprotecção a que todos nos julgamos com direito, mesmo que os nossos comportamentos sejam arriscados. E que reivindicamos peremptoriamente para as crianças, sem que muitas vezes as alertemos para os riscos que correm.
Mais ainda, é ignorarmos que todos nós, enquanto crianças, corremos riscos. E que são esses riscos que corremos com maior ou menor consciência e os actos falhados de que resultam mazelas, que nos ensinam e nos alertam mais do que qualquer conselho.
Acidentes houve, há e haverá. É inútil pensarmos que acabamos com eles.
Incúria houve, há e haverá. É inútil pensarmos que acabamos com ela.
Incúria de quem sofre os acidentes ou de quem os propicia.
Mas se se combate com unhas, dentes e gritos ferozes a incúria dos segundos, não será também altura de ensinar algo aos primeiros?
As coisas novas sempre provocaram morticínio. A máquina a vapor, o caminho de ferro, a electricidade, os automóveis, até os banhos de mar para os de sequeiro.
Mas depois atinge-se um patamar.
O que espanta às vezes é que se volte atrás.
Parece que se criou uma ilusão de que nada comporta riscos.
Às vezes, vêm-me à cabeça as desgraças biblícas. Ainda que, em alguns casos, seja patente o castigo divino e a precedente sentença, não há notícia de redução a escrito dos divinos desígnios.
No mundo dos ateus, onde estas coisas são um bocadinho mais prosaicas e as desgraças chegam ou pela mão do homem ou pela força dos elementos, há, desde há alguns anos, essa figura bizarra da calamidade por decreto.
Decretar uma calamidade é um gesto político da mesma grandeza e teor do de pedir uma maioria absoluta.
Quem pede uma maioria absoluta, quase sempre o faz tendo em vista uma certa marca de vodka e copo cheio, é bom de ver. É um pedido interessante, tão interessante que todas as campanhas eleitorais são marcadas pela sua ocorrência. Há o antes e o depois do pedido de maioria absoluta. Já pediu a maioria absoluta? Desde que pediu a maioria absoluta...
Já se pedem votos há muitas centenas de anos mas fica sempre bem mudar os vocábulos.
Decretar uma catástrofe (e pedi-la) suscita as mesmas empolações junto de jornalistas e, muito mais, junto dos autarcas envolvidos.
Só que aqui a coisa é mais palpável, embora também fortemente metáforica. Não é obviamente a catástrofe aquilo por que tanto anseiam uns e outros. É o dinheirinho.
Fica mais adequado pedir a catástrofe. É que pedir dinheiro dá ao outro o estatuto de esmoler.
Mas algum dia, alguém haveria de pegar na palavra e dar-lhe a volta. Foi agora.
Espero que o estado ajude quem precisa.
Espero também que o estado saiba legislar para punir exemplarmente os responsáveis por futuros casos semelhantes. Se não pode exercer o direito de regresso sobre quem causou avultados prejuízos, é bom que saiba afastá-los de uma vez por todas e por longo tempo do convívio social.
E já agora, mudem lá o nome à coisa. Calamidades por decreto - não, obrigado.
Há os da praxe. Ordens de serviço. Diários da República.
Há os do palco e transmissão em directo.
De cada vez que vejo um ajuntamento de louvados, vou sempre à procura das caras desconhecidas. Há poucas.
Não há ninguém perfeito e isso de prestar serviços à Pátria é o raio de uma coisa danada de se medir.
Mas há gente, até em bom número, que aqui e ali, tem servido e bem os outros. Não tenho disso a menor dúvida. Tanto quanto mo permite a conjectura e a amostra que conheço.
Já duvido e muito que o proveito seja igual à fama. Não duvidamos todos?
Por isso, de cada vez que vejo as tais caras desconhecidas, fico satisfeito. Pode até ser que me engane. Mas fico.
Um bom carro, em bom estado de conservação, um condutor calmo, experiente e dominador da máquina, uma estrada bem projectada e bem mantida, boas condições atmosféricas e boa visibilidade, tráfico reduzido, eis o risco reduzido na circulação.
Se em vez dos 120, pudesse rodar a 160, a 180, certamente que o poderia fazer ainda em segurança, em alguns troços e sob determinadas condições.
O busílis da questão é que quando se aumentam ou reduzem os limites de velocidade, o número de acidentes acompanha a variação.
Não vale a pena vir com isto e com aquilo, os números estão lá para contrariar.
A nossa ciência, não nos esqueçamos, é em grande parte de base estatística.
É com base em estatísticas que avança a medicina, a engenharia, a agronomia e outras disciplinas menos científicas.
O mesmo é dizer que, não se conhecendo em pormenor os mecanismos que regem determinados fenómenos, é com base na experimentação e na catalogação de resultados que se tiram prováveis conclusões.
Interessa-me hoje falar numa questão que é mais ou mais menos conhecida. E que é descrita e denominada de diversas formas. Chamemos-lhe auto-alimentação, reacção em cadeia ou outra coisa qualquer.
Observa-se que o fenómeno do suicídio parece auto-alimentar-se.
O conhecimento de um acto suicida parece despoletar em outros a mesma intenção. Há assim uma espécie de crises limitadas no tempo e que se limitam no espaço dependendo da propagação da notícia.
Já aqui referi o bizarro e tragicamente irónico caso da avenida de Ceuta, anos atrás.
De como a ampla divulgação do caso parece ter despoletado uma crise.
De como um grosseiro erro jornalístico motivou a deslocação do cenário dos suicídios, do local onde o primeiro ocorreu para o local que erradamente os jornalistas deram como tendo sido o da tragédia.
É sabido que em tempos mais remotos se tendia a esconder uma tragédia ou a sua verdadeira dimensão. Concorrendo com isto, havia também um reduzido leque de meios ao dispor da imprensa.
Tome-se o caso tão discutido das inundações de Novembro de 1967.
Ainda hoje se não sabe a extensão dos danos pessoais que causou.
Algures entre os acanhados números oficiais e os decerto empolados palpites jornalísticos, há-de estar um valor realista.
Hoje, a imprensa selecciona mais ou menos arbitrariamente as tragédias a divulgar.
Um exemplo disso é a comparação entre as reportagens dos incêndios deste ano. Comparar a divulgação dos que ocorreram durante o Euro 2004 e os que ocorreram após.
Claro que são as prioridades. Os meios não chegam para tudo, sabemos isso.
Partamos agora do princípio conjectural de que o incendiarismo é um fenómeno que pode ser auto-alimentado da mesma forma que o suicídio.
A questão que se coloca é que, a ser verdadeira esta conjectura, de cada vez que se propagandeia um fogo, se está a incutir em quem tem essa pulsão, o desejo de incendiar.
Como é que se arrumam todas estas linhas?
Da seguinte forma:
Se é certo que as estatísticas nos fornecem dados úteis para avaliar os fenómenos, porque não testar isso em alguns campos?
Se a conjectura que acima expus e que é de resto partilhada por muitos, tem alguma probabilidade de ser verdadeira, porque não pô-la à prova?
Se ao tempo da censura e do lápis azul, sucedeu uma aparente licença de tudo publicar, não haverá campo para restringir a informação em fenómenos como o do incendiarismo que, até prova em contrário, não porá em casa nenhum dos valores democráticos tão insistentemente reclamados a troco de tudo e nada?
Até porque, como se viu, nem sempre os fogos são matéria interessante. Havendo futebol a rodos, lá ficam para trás.
Fosse isto experimentado e feitas depois todas as correcções relacionadas com as condições atmosféricas, sabendo já que todos os factores da dita correcção são falíveis e incertos, ter-se-ia uma ideia se vale ou não a pena.
É claro que essas notícias vendem jornais e espaço publicitário. Eu sei disso.
É claro que tudo isto é de uma ingenuidade gritante.
Tenho notado, no entanto, que não tem havido divulgação de suicídios na imprensa. Que eu tenha dado por isso.
Ou de carros a circular em contra-mão.
O pai de J. não sabia como e quando ele tinha começado a ler. Só as maiúsculas de imprensa.
Lia e escrevia, conquanto-a-escrita-se-fizesse-com-hífenes-a-separar-as-palavras-já-que-J.-não-dominava-os-espaços-entre-as-letras-e-entre-as-palavras-e-sabendo-disso-era-dessa-forma-que-separava-uma-palavra-da-outra.
Talvez que J. soubesse ler as palavras, mas decerto não lhes conhecia o significado muitas vezes.
O que é isto? O que é que quer dizer?
Nesse dia, o pai de J. lia o jornal que o fornecedor habitual acabara de lançar quinze metros no ar até à janela.
J. estava virado para a primeira e última páginas, atrás das quais o pai se escondia, e deu-lhe para perguntar porque é que o jornal era todos os dias diferente, excepto o cabeçalho e um certo número.
Qual número?
Este.
Ah, isso é o ano.
E o ano também muda?
Não se pode dizer que nesse tempo o homem passasse com distinção no teste do álcool.
A verdade é que as paragens da camioneta eram tabeladas pelo gorgolejar da mini, a mão esquerda em punho sobre o balcão, o corpo a três quartos de volta, o olhar de esguelha para os passageiros embarcados, e pelo monossílabo abaladiço enquanto a mão direita compunha a bóina.
Era assim.
Mas nesse dia, depois da trovoada associada à depressão de origem térmica, o horário foi furado.
Numa das paragens saí da camioneta também. Fui à mini, tal qual o homem.
De volta à carreira, vi-o dar mais três passos do que a conta.
Quatro ou cinco homens olhavam para o chão.
Um deles atirou qualquer coisa.
Folhas de couve de chapa nove e almirantada efígie circulavam calmamente de mão em mão.
Numa poça de água, melhor dizendo num buraco cheio de água, as moedas caíam e recuperavam-se em ritmo lento.
A carreira atrasou-se uns cem escudos nesse dia.